Tempo invernoso, frio de enregelar a alma. De bochechas rochas, lábios rachados, íamos a pé à escola comunitária católica. Uma gorda meia hora levávamos pela vereda pedregosa da Alte Pikade. Nos pés um chinelo com meio metro a mais de tamanho para que o pé pudesse crescer dentro dele por longo tempo. Pé e perna doíam para carregar o descompasso entre tamanho do pé e tamanho do calçado: Schlapp, schlapp, schlapp … o passo não rendia, tirávamos e seguíamos descalços.
Na sacola de pano, cosida pela Wowa, havia livro, caderno e, claro, Frühstück – uma generosa fatia de Milhabrot com Schmier. A exceção ficava para a filha dos donos da venda, que trazia consigo pão macio e alvo de farinha de trigo, com manteiga e rodelas de linguiça, hmm! Havia ocasiões em que ela se desvencilhava do manjar, atirando-o para a valeta, porque não lhe apetecera. Ó Deus! Minha timidez segurava meu ímpeto de correr atrás do pão desprezado. Desperdiçar alimento era pecado inafiançável, eu aprendera em família.
Por ser a escola pertencente à Igreja católica, participávamos de eventos religiosos. A missa em latim para mim – educada em casa dentro dos preceitos de Martin Luther – guardava fascinantes mistérios. Na escola o professor Rabuske tentava nos ensinar em língua portuguesa, outro mistério. O máximo que ele conseguiu comigo foi ensinar-me a decorar. Nomes de estados e capitais? Na ponta da língua. O que vinha a ser um estado, uma capital? Neca! Lagos, rios, istmos, ilhas, arquipélagos? Todos decorados. O que significavam? Neca! Eu era um bom papagaio em Língua portuguesa. Quando o professor queria se fazer entender, não lhe restava alternativa: rangendo os dentes, falava em alemão comigo e com os demais da classe também. Principalmente para dar ordens ou para repreender.
Fora da escola e da igreja a vida parecia menos misteriosa. Fome não passávamos. Havia sempre imensa horta e pomar para, entre as refeições, a fome infantil se satisfazer. Quando o desejo por um Zuckerstein -balinha em nosso alemão- vencia, lá ia eu com uma cestinha carregada de frutas para levar de presente à vendeira. Junto do balcão eu ficava na ponta dos pés, de modo que meu cabelo espetado, por falta de intimidade com o pente, anunciava minha presença. Minha Wowa costumava ralhar comigo: “Du siehst ja aus wie,n Igel!” (Tu pareces um ouriço!) Mas meu cabelo de Igel tinha lá suas vantagens, supria meu acanhamento para que Frau Mercedes percebesse minha presença do outro lado do balcão. Assim eu lhe entregava frutas e, em troca, recebia um punhado de Zuckerstein. Oh, delícia dos deuses! Apropos, sempre ficava a imaginar um Igel. Muitos animais compartilhavam de minha infância, mas um Igel? Somente muito mais tarde eu o conheci num jardim na Alemanha. No curto espaço em que ele me encarou assustado, todo espetadinho, lembrei das palavras de minha Wowa. Ela sabia do que falava. A Lissi infanta e o Igel guardavam semelhanças.
E quando foi tudo isso? Quando a língua alemã permeia a vida e a memória se abre em brotação.
*Lissi Bender é professora de Leitura e Produção de Textos, Língua, Literatura e Cultura Alemã, Subchefe do Dep. de Letras da UNISC – Universidade de Santa Cruz do Sul, RS, doutoranda na Universidade de Tübingen, Alemanha, comentaista do programa radiofônico AHAI – A Hora Alemã Intercomunitária/Die Deutsche Stunde der Gemeinden e colunista de www.brasilalemanha.com.br.
E-mail: lissi@unisc.br