Vidas que nos antecederam – Lissi Bender*

Enquanto cumpríamos esse ritual, afloravam em sua memória eventos, fatos por ela vivenciados ou ouvidos sobre cada ente  ali sepulto.

Os epitáfios em língua alemã a Wowa decifrava para mim e eu ficava a divagar sobre a vida de cada um. Depois que proibiram o idioma perdeu-se esse precioso hábito. Também havia muitos pequenos cemitérios, em terras particulares, em meio a natureza. A maioria deles já foi destruída.   

Em minhas andanças pela Alemanha tenho visitado diversos cemitérios. Em Tübingen costumava caminhar pelo Stadtfriedhof aos domingos à tarde. Fazia visitas costumeiras aos poetas Hölderlin e Uhland, sentada num banco, divagava, lia seus poemas e as aves me ouviam circunspectas. Acho que a alma de meus poetas também.

Em Hamburg, certa vez fui ao Ohlsdorf, o maior Parkfriedhof do mundo, decidida a encontrar o túmulo de um de meus escritores preferidos, Wolfgang Borchert. Munida de um mapa do cemitério, fiz minha peregrinação e, depois de muito andar, o encontrei. Em pleno frio de março ele estava florido de Stiefmütterchen. Sentei-me ao pé do túmulo e li para ele dois de seus textos que me marcaram: Die Küchenuhr  e Nachts schlafen die Ratten doch.

Depois que conheci os cemitérios na Alemanha, verdadeiros parques arborizados, túmulos com flores cultivadas, bancos  onde tudo convida para um deixar-se vagar, meditar sobre o sentido da vida e da morte, venho prestando mais atenção ao tratamento que nós damos aos nossos cemitérios, aos nossos falecidos. Que tratamento é esse que prestamos aos que nos antecederam? Campos áridos, sem árvores, sem flores naturais, sem bancos, sem verde. Em seu lugar, cada vez mais estamos ocupando cada palmo com concreto, erguendo muros com gavetas. Mesmo no interior, estamos engavetando nossos mortos. Não lhes permitimos mais se incorporarem à terra mater de onde toda vida procede. Chegamos a instalar um cemitério totalmente vertical denominado Paz Eterna. Estranha essa concepção de eternidade que dura enquanto alguém se responsabiliza pelo pagamento da gaveta, ou enquanto não cair o muro.

Pensando nisso, volta-me à memória o pensamento de um filósofo francês, de cujo nome não me recordo: “O verdadeiro amor pela terra não é o simples amor ao solo, mas a  valorização e o respeito às gerações que o fertilizaram.”

Onde ficou nossa consideração para com as gerações que fizeram frutificar o solo, o nosso espaço de viver, para que nele nossa vida pudesse medrar?

Flores naturais? A maioria já não mais  as  cultiva como fazia minha Wowa, que em tempo de finados colhia flores perfumadas em seu jardim para nossos entes queridos e para ofertá-las aos passantes a caminho do cemitério. Nossos cemitérios hoje ostentam um mar de flores de plástico que desbotam e entulham o campo santo de lixo. Lixo que não se decompõe. Como vamos incentivar nossos filhos a cultivarem um olhar carinhoso para as histórias de vidas passadas, se o espaço que concedemos aos que fertilizaram nossa Heimat é seco, pragmático, abarrotado de lixo e sem vida?

*Lissi Bender é Cronista, colunista, comentarista AHAI e professora da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.  lissi@unisc.br